não esquece de mergulhar
20km em portugal e algumas elaborações sobre last-time feelings e o corajoso ato de bancar suas escolhas
uma das coisas que eu mais gosto sobre correr longe é que a sensação de estar fazendo algo pela primeira vez -seja acrescentando uns kms da última corrida mais longa, seja correndo a mesma distância num percurso novo, mais demorado, com um estímulo ou terreno diferentes- é bem recorrente. as corridas mais longas alimentam minha curiosidade. sobre o que vou encontrar numa nova distância, é claro, mas principalmente sobre mim.
tem gente que conta seus capítulos e recorta seus ciclos pelo calendário. pelos aniversários e até estações do ano. eu também olho bastante pro tempo assim, mas com mais frequência me conto a história de que conheço uma pessoa diferente em mim a cada vez que passo mais tempo correndo do que a última vez.
até porque, assim, também passo mais tempo comigo.
tenho até reparado que as provas de corrida não me animam tanto quanto uma corrida com amigos pra explorar uma cidade nova, se a distância ou percurso da prova forem os que já conheço bem. acho que correr longe me deixou um tanto viciada nas sensações de primeira vez.
first-time feelings
no meu último sábado em portugal, corri 20km pela primeira vez desde a maratona.
ao final, mergulhei num mar congelante pra mim. diz que tava 12 graus, e eu digo que minhas articulações doeram mais do que numa das vezes que nadei em copa e, nem depois de comprar um café (superfaturado) pra tentar parar de me tremer na volta de bicicleta pra casa, eu me esquentei. lembro tão bem porque foi a primeira vez que isso aconteceu. e também porque doeu.
também não devo me esquecer do mergulho de portugal, que começou como o mais frio do mundo pra mim, mas valeu a dor momentânea pelo que percebi depois. era um mergulho que eu não poderia deixar de dar
e fomo não é bem a palavra.
apesar do frio, voltei do mar falante, sorrindo. reparei que mesmo sabendo que entrar na água doeria, não cogitei não mergulhar. não pela sensação de primeira vez mergulhando numa água tão gelada, mesmo porque não foi a primeira vez me sentindo assim, esse desconforto debativelmente gostoso.
mas pela possibilidade de essa ser a última.
last-time feelings
passado o sentimento de saudade antecipada pela coisa (correr numa praia linda onde eu provavelmente não vou mais voltar nessa vida) e pela pessoa (que me levou pra correr nesse lugar, e quem não sei se vou encontrar de novo), fiquei buscando diferenciar o luto que geralmente se inicia quando algo que você não queria que acabasse acaba do sentimento de última vez que essa situação juntou ali.
uma sensação de necessidade e até um pouquinho de urgência em aproveitar o momento que não vai voltar. não triste, ou com qualquer pesar. mas com uma pinçada de consciência de que quem não vive o que está pra acabar também não sofre a perda - e, às vezes, nem a falta.
me lembro de um dos meus lutos amorosos mais dramáticos. saía sempre de óculos escuros porque chorava fácil ao cruzar com qualquer lembrança. em qualquer lugar.
lembro que andava pelas ruas pensando em como qualquer pessoa que não era eu tinha sorte
por não terem conhecido o motivo de tanto choro
acho que a diferença fundamental entre um e outro é ter a escolha. em outros momentos eu posso, e provavelmente devo, escolher não mergulhar.
o sentimento-de-última-vez é um que chega um tanto pela improbabilidade de os acasos ou os astros se alinharem nessas condições em um outro momento (aquilo que os jovens chamam de timing), mas também pelas escolhas que ainda vou fazer. essas podem muito bem me levar pra longe de estar ali de novo. ou não, mas eu não vou saber agora. até porque
o que for acontecer já está acontecendo
não existe escolha certa
em Slow Burn, Mari diz do magnetismo de tudo que não aconteceu:
acho que imaginar demais é parte de quem escreve, e explorar o imaginário me leva, inevitavelmente, a pensar nos could have been que deixei pela vida. Em todas as coisas que já foram indefinidas para mim um dia, antes das respectivas decisões que as fariam definidas e, por consequência, tornaram inviáveis todos os outros resultados de possíveis diferentes decisões que não tomei. Ser quem você é implica abdicar continuamente de quem você poderia ter sido.
a conversa durante minha última corrida longa em portugal e meu último mergulho doloroso até hoje (sei que vou correr mais vezes em novas cidades e mergulhar em mares que só vou saber a temperatura depois de entrar até a cabeça) tocou em um dilema que encaro há uns anos. o que fica entre a flexibilidade e o limite, entre o sim e o não. meu e do outro.
acho que ser tão flexível já me fez falar muito sim sem querer. provavelmente tentando proteger algo além, mas me deixando num estado que hoje antecipo e evito que é o de ressentir. minhas escolhas, mas também por quem supostamente as fiz.
do outro lado, a busca por encontrar e ser fiel aos meus limites. essa já me enrijeceu um tanto, provavelmente protegendo o que nem importava tanto assim, mas me deixando com alguns ‘e se’s de lembrança pra ficar revisando depois. e eu gosto muito menos desse último.
juntar coragem (e abrir espaço) pra mudar de ideia e voltar atrás dói menos do que nem descobrir se doeria mesmo
a relação, que ficou em algum momento entre o fim da corrida e o início do mergulho, não me deixou com muitas escolhas pra fazer. meu sim encontrou um não e alguns dos limites do outro. aqueles, ainda mais rígidos que os meus.
me lembro, então, que quem não tem problema em mudar (de rumo, de rota, ou de ideia) não tem, na realidade, tantos dilemas assim. escolho mergulhar.
mergulho mais pelo desfecho (noto agora que não temos uma boa palavra em português pra closure), porque adoro voltar de viagem com história pra contar, mas também porque nunca cogitei entrar num mar que eu não conseguisse sair sozinha depois.
autorresponsabilidade
na última conferência do clima conheci uma peruana que me deu uma tornozeleira de presente da delegação do peru. disse pra fazer três pedidos, o último deles sendo visitar o peru. não conheço o peru, não me opus.
meu primeiro pedido foi conseguir, dessa vez, chegar ao fim do ciclo pra uma maratona em 2024. não pedi pra correr, mas pedi pra poder tentar. pro segundo, pensei no amor.
eu passei a maior parte dos meus 20 e poucos solteira. foram alguns anos pensando que tinha azar nessa coisa de amor, por não pedir mais do que o mínimo e razoável (talvez fosse esse o problema) e, ainda assim, sempre acabar um pouquinho depois de começar a parecer que ia dar certo. recentemente, entendi que só cheguei disponível emocionalmente aos 20 e tantos. a coincidência: passei a ter sorte.
“chegar na maratona e ser razoável no amor”. independente do ceticismo, gosto de lembrar de como amarrei a tornozeleira pensando baixinho nos meus pedidos e ver que não peço mais pra vida ser razoável comigo, mas pra que eu seja.
decidir correr uma maratona e se abrir pro amor são escolhas feitas com poucas garantias materiais de que as coisas vão dar certo e, no meu caso, diante de algumas memórias de que elas já deram bem errado uma vez.
mas, seja pelas sensações de primeiras ou últimas vezes, seja pela curiosidade sobre a pessoa que vai sair na ponta de lá da escolha, tenho escolhido mergulhar mais. e há tempos não reclamo mais de frio.
“Se pudesse desejar algo para mim, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade. Desejaria apenas um olho que, eternamente jovem, ardesse de desejo ao ver a possibilidade.” Kierkegaard, Der Augenblick [o instante]
Você escreve muito bem! Obrigada por compartilhar.
Texto maravilhoso. 🏃🏻♂️