escrever em movimento, confiar nos acasos, resolver caminhando
algumas coisas que aprendi na minha melhor idade até agora
outro dia eu fiz 29 anos. era sexta-feira. tive algumas reuniões de manhã, mas consegui correr na feira antes do meio-dia pra comprar flores e não deixar de ter a casa florida no fim de semana. minha primeira prioridade aos 29.
nessa mesma hora no ano passado, recebi em casa um arranjo de girassóis. chegaram de uber-flash, acompanhadas de um bilhete escrito em máquina de escrever. eram do designer de copacabana, um rolo que durou uns 3 encontros, mas rendeu alguns “por isso eu odeio gostar de homem!!!” em áudios no whatsapp pras minhas amigas.
engraçado pensar que até um romance tão rapidinho assim esteja me rendendo uma história pra contar agora, e digo "até" porque as histórias costumam ser uma desculpa (de mim e pra mim) quando percebo que me expus mais uma vez à possibilidade de me decepcionar. entre minhas amigas, quando o assunto é relação amorosa, eu sempre fui mais do grupo das que se arriscam do que das que se preservam. sempre chorei mais, também.
sempre ouvi que tem risco que não vale a história.
mas tem história que muda a gente pra sempre
apesar do preço quase sempre alto em se arriscar (a se relacionar, se investir, se desafiar), aos 28 olhei pra trás algumas vezes e mal consegui enxergar tudo que teve que dar certo pra eu viver coisas que, aos 27, não tinha coragem de dizer em voz alta que queria viver. e muita coisa também teve que dar errado.
"errado", entre aspas, na verdade. porque o que dá errado tá dando certo, já tem um tempo que eu repito.

aos 29, contanto que eu siga gostando de quem é a pessoa que sai do outro lado da escolha, não me demoro mais no arrependimento de ter topado o risco. aceito e sigo. mergulho.
desde o meu aniversário, tenho comprado flores toda semana. quase sempre girassóis. não penso no cara que me frustrava, ou nas outras escolhas menos acertadas que fiz desde então, mas posso dizer que foi nosso primeiro encontro que me mudou.
quando contei que há anos guardo cadernos físicos que tenho como diários, ele logo sacou um caderno do bolso e contou que carrega por aí pra desenhar e escrever de qualquer lugar. era um caderninho de uns 10x13cm, um objeto que eu nunca tinha achado útil por ser tão pequeno e uma página não parecer servir pra muita coisa além de listas de afazeres, rabiscos, e anotações que você sabe que vai perder ou jogar fora depois - mas é pra isso que servem os blocos de notas e post its, não os cadernos.
escrever em movimento
um dia andando por copa, encontrei um caderno com as mesmas dimensões. era marrom e tinha a gravura de uma mão segurando um coração em chamas, que é um símbolo que adoro associar à corrida pois é assim que me sinto depois de uma boa e bem longa. mais tarde, descobri que a gravura era de um recorte da obra barroca Allegory of Charity, do Francisco de Zurbarán. e não vou fazer a culta: estou confortável em afirmar publicamente que comprei por ser uma versão bonita do emoji de coração em chamas ❤️🔥
esse caderninho (que esteve em brasília, leiden, bruxelas, buenos aires, são paulo, dubai, bangkok, krabi, chiang mai, hanoi, hoi an, recife, florianópolis, koln, bonn, Uma Cidade Aleatória na Fronteira da alemanha com a holanda, amsterdã, barcelona, lisboa, sintra e frankfurt) foi a adesão a um traço pessoal de alguém mais rápida que já me aconteceu. e hoje sou eu quem presenteia com um caderninho quem cruza comigo e conta que gosta da ideia de escrever à mão e, em especial, em movimento.
escrever em movimento, em trânsito e viajando, nesses momentos em que a gente tende a ser menos a gente pra viver o que tá fora, mas facilmente entra num estado meio automático, que depois vira cansaço e vontade de voltar pra casa
acessar meu ir e vir em diferentes cidades e estados de mim tem me ajudado a processar com calma o passar do tempo e a decidir o que de fora eu quero que fique comigo. ajuda a conhecer melhor quem eu era quando escrevi, às vezes voando, antes de o avião pousar, e a pegar nas mãos a recordação material de que quem decola de volta pra casa é outra.
tem me ajudado a receber melhor a constatação de que tudo muda
mais até do que cruzar com Caminhões de Mudanças pela rua
confiar (e romantizar) nos acasos
estou editando esse texto na sala de embarque pra minha escala de 8h em frankfurt, a caminho da Conferência do Clima em Baku. a escala no país do meu namorado é uma coincidência, um acaso. o segundo que já nos colocou a uma decisão (que ele chama de intuição e eu não discuto) dele de pegar o carro e dirigir uns 200km pra nos vermos com hora pra despedir e eu voar de novo.
quando viajo sinto que fico mais atenta aos sinais que o lugar dá. refraseando, aos que preferem a racionalidade mesmo diante da falta de sentido lógico e razoável na maioria das coisas: costumo empregar significado a símbolos que, quase sempre, derivam da ordem (nem sempre natural) das coisas.
como se pra dar pessoalidade às coincidências e aos acasos, mas também pra me acalmar quando não tenho controle sobre as mudanças
nos meus planos e na vida
acho que tem a ver com uma busca por pertencimento que a gente tem. por de alguma forma conseguir explicar o porquê de estarmos onde estamos, quando o lugar ou novo estado das coisas ainda é desconhecido. é uma forma de desestranhar.
escrevi sobre isso no meu primeiro dia em hanoi, no vietnam:
estou sempre tentando não me apegar muito a detalhes pra sofrer um tanto menos, mas romantizo minha realidade um tanto mais, e não sei se viveria de outra forma. daí, sempre que me percebo em uma cidade nova, reparando esses acasos (aos quais me apego e muito)
- escutar uma música não muito popular que eu gosto no lugar em que acabei de entrar
- ler uma frase no canto de um muro que calhei de encontrar depois de dobrar na esquina errada
- decidir ficar até mais tarde e conhecer alguém com quem eu sequer cruzaria se tivesse ido emboranão penso outra coisa:
estou sempre no lugar certo na hora certa
tirei essa foto comendo bolonhesa de lentilha de um pote no único hotel que encontrei disponível no centro de frankfurt de madrugada. bolonhesa de lentilha era a única comida pronta pra comprar no hotel (e, se você só me conhece pelo substack, talvez ainda não saiba que sou vegana). passei a noite de roupão porque a companhia aérea ficou com as minhas malas, e eu tinha três garrafas de vinho português e uns 6 euros na mochila depois de perder uma das escalas na volta de lisboa pro Rio. nenhuma roupa limpa.
48h depois dessa foto, que tirei depois de resolver o que dava entre todas as coisas que deram errado e me pegaram despreparada, o homem que dirigiu uns 200km até frankfurt pra me ver uma última vez (talvez na vida, eu achava) me deixava no aeroporto. três semanas depois, era ele quem desembarcava no Galeão.
eu não perderia o vôo se tudo tivesse ido como planejado. ou podia ter perdido em genebra, ao invés de frankfurt, porque minha conexão de lisboa pra lá também atrasou. mas o que deu errado, por acaso, estava dando certo.
resolver caminhando
durante meus 28, andei e corri por oito países. um pouco antes de ir pra dubai, a cidade menos andável que já pisei, a mari (outro encontro que me mudou) me emprestou flâneuse, da Lauren Elkin. o livro conta sobre mulheres caminhantes, e me deixou mais atenta ao explorar a cidade à pé. atribuindo significado ao caminhar, me descobri flâunese.
esse virou meu livro de ler em movimento (outro dia contei que gosto de combinar livro com ocasião e que isso me fez ler mais devagar, mas mais)
algumas cidades, mesmo as anti-caminhantes como dubai, são mais seguras para as mulheres que andam e tenho me aproveitado disso quando posso.
passei a escolher voltar pra casa andando sem ligar muito pra distância porque, mesmo se no meio do caminho eu me cansar, eu sempre vou estar mais perto do destino do que quando comecei. um ponto de ônibus ou estação de metrô a menos, ou alguns centavos de qualquer moeda a menos de taxi. e o que eu vejo das cidades fora do caminho demarcado e da velocidade dos outros meios sempre vale a caminhada.
andar também é um recurso pra quando sinto urgência de reagir a algum desconforto. essa é uma coisa que aprendi e ainda não mudei, porque eu ainda reajo de formas que quero mudar, mas outro dia uma pessoa com mais recursos que eu me levou pra dar uma volta no quarteirão antes de reagir a uma situação em que eu não tinha nada a ganhar reagindo. e quando voltamos pra casa eu simplesmente não queria mais reagir.
uma reação que era, ou parecia, urgente
mas uma volta no quarteirão fez não ser mais
acho que é nietzsche quem tem uma frase que diz pra não confiar em um pensamento que te ocorre dentro de casa, e eu acho que ele tava era aconselhando o leitor a ir dar uma andada.

comecei a escrever esse texto na semana do meu aniversário desse ano, quando tirei a foto das flores com o caderninho na minha mesa de jantar. quatro meses depois, acabaram as páginas em branco dele e já comecei outro (que por enquanto conhece o Rio, paraty, são paulo, frankfurt, e baku).
hoje vejo que escrevi esse texto olhando pros 28 como minha melhor idade como se não lembrasse que também disse isso dos 27. mas digo até agora porque 29 deve ser uma forte candidata a ser retratada dessa forma depois que minha década virar.
digo isso sabendo que as coisas vão seguir não sendo perfeitas não importa a idade. elas no máximo vão ficando mais encaixadas, e eu com menos necessidade de entender o porquê do que me acontece quando acontece. mas escrever em movimento, confiar nos acasos, e resolver caminhando é o que têm ajudado a olhar pra esse encaixe sem querer que as coisas fossem diferentes do que foram. olho e vejo que foi realmente o melhor que
era pra ser.
Esse foi um dos melhores textos que li por aqui, obrigada! ❤️🔥
Que peça de arte, esse texto.